segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Código do desflorestamento

A mensagem do novo CFB, generoso em anistia para desmatadores, parece clara: não é necessário cumprir a lei, basta aguardar até ela ser mudada e todos os passivos ambientais serem perdoados

Artigo de Jean Paul Metzger e Thomas M. Lewinsohn

O Brasil conquistou reconhecimento internacional pela consolidação de sua economia e por seu extraordinário patrimônio ambiental, podendo se tornar um exemplo de desenvolvimento aliado à conservação. No discurso, ninguém discordaria que esse é o caminho ideal para o País. As divergências surgem na hora de implementar um efetivo desenvolvimento sustentável. A proposta de um novo Código Florestal Brasileiro (CFB), apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, opta pelo caminho contrário, pois as alterações propostas sinalizam que o desenvolvimento só é possível à custa do ambiente.

A nova proposta do CFB descaracteriza as Áreas de Preservação Permanente (APP), reduzindo a proteção ao longo dos rios e corpos d’água, além de excluir as restingas, topos de morro e várzeas. Isso provocará especulação imobiliária ainda maior nas poucas restingas que restam no litoral brasileiro; reduzirá a reposição e os estoques de água no lençol freático e, progressivamente, a capacidade de irrigação das culturas. A ocupação legalizada de áreas alagadas somente agravará as tragédias que já ocorrem nesses locais, pois as enchentes afetarão cada vez mais as populações que as ocupam.

O novo CFB praticamente extingue as Reservas Legais (RL), ao liberar 90% das propriedades rurais de sua conservação. Para as demais, flexibiliza o uso e oferece muitas vias para reduzir efetivamente as áreas que deveriam ser destinadas à proteção ambiental. Se aprovado o novo código, as APP serão incluídas no cômputo das áreas de RL. Pior do que isso, as Reservas Legais poderão ser “recuperadas” com plantações de espécies exóticas (sem fixar nenhuma proporção mínima de preservação ou recomposição de vegetação nativa), e a exploração econômica dessas áreas será feita conforme parâmetros estabelecidos por cada Estado ou município. Dessa forma, as RL deixam de ser reservas de serviços ecossistêmicos e de proteção ambiental para se travestir em plantios voltados para a exploração madeireira.

O efeito de tais mudanças será a ampla legalização do desmatamento, após uma curta moratória de 5 anos. As estimativas preliminares são de que 70 milhões de hectares serão desmatados, e outros 40 milhões de hectares de RL deixarão de ser recuperados, o que levará a uma emissão de pelo menos 25 a 31 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa – inviabilizando a meta assumida pelo Brasil em Copenhague de reduzir suas emissões em 39% até 2020. Ademais, uma estimativa simples, baseada na relação entre o número de espécies e a área perdida, projeta a extinção de mais de 100 mil espécies. Não há precedente histórico recente de autorização legal para um extermínio biológico nessa escala.

A implementação desse novo CFB é operacionalmente inviável ao transferir a Estados e municípios decisões críticas sobre a redução da área das RL e das APP ao longo dos rios e a aprovação de planos de exploração madeireira nas RL, entre outros. Decisões vitais como essas estarão sujeitas a pressões econômicas e acertos políticos locais. Além disso, a maior parte dos municípios não tem órgão ambiental, e muitos Estados não contam com pessoal capacitado nem com dados geoambientais organizados para enfrentar a enxurrada de pedidos de alteração ou adequação a que serão submetidos, caso o CFB seja sancionado.

É evidente que a proposta do relator Aldo Rebelo peca pela falta de embasamento científico. O deputado e seus apoiadores tentam reduzir toda a discussão em torno desse projeto a um caricato embate entre ruralistas e ambientalistas. A ciência de que se arvoram provém de poucos cientistas e algumas citações fora de contexto, ambos escolhidos a dedo. Com isso, exclui-se uma ampla parcela da comunidade científica das discussões. Nenhuma sociedade científica de ecologia, zoologia, ou botânica foi oficialmente contatada, apesar de serem essas as sociedades que mais entendem de ecossistemas e biodiversidade, o que obviamente é relevante para a revisão da legislação ambiental brasileira. O Brasil é hoje respeitado internacionalmente na pesquisa científica da biodiversidade e conservação, formando anualmente mais de 150 doutores e 450 mestres em seus 35 programas de pós-graduação em ecologia. De que adianta o investimento público na formação de cientistas especializados e de uma extensa infraestrutura de pesquisa, se o conhecimento relevante é marginalizado do processo decisório?

Por fim, preocupa a proposta de total anistia para aqueles que ocuparam ou desmataram de forma irregular até 22 julho de 2008 – ou seja, aqueles que infringiram o Código Florestal durante 43 anos. A mensagem parece clara: não é necessário cumprir a lei, basta aguardar até ela ser mudada e todos os passivos ambientais serem perdoados. Seguindo essa conduta, não haverá razão para respeitar esse novo CFB. Outro deputado proporá uma nova modificação daqui a 40 anos, quando, pelo que hoje se propõe, não restará mesmo muito mais o que conservar.

* Jean Paul Metzger é professor do Instituto de Biociências da USP; Thomas M. Lewinsohn é professor da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

EcoDebate, 21/06/2010

As florestas e o futuro do planeta

Nesta época do ano, em várias regiões do Brasil, multiplicam-se as queimadas. Os jornais falam em milhares de focos de incêndio que devastam florestas, campos e cerrados. A maioria destes focos é provocada por proprietários rurais. Tanto o governo como grupos ecológicos têm dificuldade de impedir este crime ambiental. O quadro se agrava mais agora, quando o Congresso Nacional discute e vota um novo Código Florestal.

Para compreender melhor o conteúdo e as consequências de tal lei para as florestas brasileiras, basta perceber quem o defende e quem o ataca. Apesar de proposto por um deputado que se diz socialista, o novo Código está sendo defendido pela bancada rural do Congresso e por grandes latifundiários. Contra ele estão o Ministério do Meio Ambiente, todas as entidades que trabalham com a defesa da natureza, as organizações de trabalhadores rurais e os povos indígenas.


Só por isso, já é possível alguém saber que posição deve tomar a respeito deste assunto. Entretanto, alguns dados publicados pelo sociólogo Rafael Cruz ainda nos alertam mais: “A proposta de revisão do Código Florestal abre margem para novos desmatamentos, na ordem de 85 bilhões de hectares de terra, uma área maior do que a dos Estados de São Paulo e Minas Gerais juntos” (Cf. Le Monde Diplomatique Brasil, julho 2010, p. 20).

Muita gente lamenta as inundações ocorridas no início do ano em Santa Catarina e São Paulo e o verdadeiro tsunami fluvial provocado pelas chuvas, que há um mês devastaram várias cidades de Alagoas e Pernambuco. Entretanto, poucos ligam estes fatos com a destruição das florestas e a degradação do ambiente. Conforme os órgãos internacionais da ONU, o Brasil é o quarto maior poluidor do clima no mundo e o é por causa das queimadas.

A ONU adverte que a destruição das florestas brasileiras é responsável por 75% das emissões de gases estufa do País. O governo brasileiro assumiu compromissos internacionais de conseguir, até 2020, reduzir a emissão de CO2 em até 38, 9 % e diminuir em 80% o desmatamento da Amazônia. Ora, quem estuda o assunto sabe que já foram derrubados 73 milhões de hectares de floresta amazônica, dos quais, segundo dados do governo, 80% são ocupados com criação de gado. Da imensa Mata Atlântica que se espalhava por toda a região próxima do litoral brasileiro, restam apenas 7%. E o Cerrado que se estende por vários Estados e no qual nascem quase todas as grandes bacias hidrográficas do Brasil é o mais ameaçado de todos os biomas.

“O novo Código Florestal está sendo chamado de “a lei da motosserra”. Parte da premissa de que as preocupações ecológicas não são importantes e que a concentração da propriedade rural brasileira deve ainda aumentar. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, com dados de 2006, o Brasil tem 5, 2 milhões de estabelecimentos rurais. Destes, 84% são de agricultura familiar. São 4, 4 milhões de pequenas propriedades que, juntas, ocupam apenas 24% da área agrícola

brasileira, ou seja, um total de 80 milhões de hectares, e abrigam 74% dos trabalhadores no campo.

Enquanto isso, 16% de grandes propriedades rurais ocupam 86% das terras agrícolas brasileiras. É um total de 250 milhões de hectares, área equivalente às regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, juntas. O tamanho médio destas propriedades é de 300 hectares, enquanto o agricultor que, de fato, abastece a maioria de nossas feiras livres é de 7 hectares. Como os ruralistas acham pouco essa escandalosa concentração de terra, querem mais. Com a anuência da Comissão do Congresso que quase só escutou proprietários rurais e com o descaso das pessoas desinformadas, pretendem tomar mais espaço de nossas reservas florestais e de áreas de proteção ambiental” (Cf. Le Monde Diplomatique Brasil, idem, p. 21).

O Mahatma Gandhi já dizia que a terra, com suas florestas e suas áreas verdes preservadas, é suficientemente grande e maternal para alimentar toda a humanidade, mas nunca bastará para saciar a ambição da pequena porção de seres humanos que faz do lucro e da ganância a sua divindade. A quem é cristão, o Evangelho adverte: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).

Marcelo Barros é Monge beneditino e escritor

Artigo originalmente publicado no O Popular, GO.

EcoDebate, 05/08/2010

Modificações do Código Florestal para benefício dos latifundiários

Artigo de Luiz Zarref, Engenheiro Florestal, Via Campesina e Articulçao Nacional de Agroecologia, e-mail: zarref@gmail.com

Apesar da grande campanha ideológica das elites brasileiras em busca de apresentar o agronegócio como uma agricultura moderna, as contradições deste modelo de produção agrícola são difíceis de esconder. Em pleno século XXI seu modelo produtivo continua igual à época da invasão portuguesa, baseado no latifúndio, em sua maioria fruto de grilagem e expulsão de quilombolas, indígenas e camponeses; no trabalho escravo ou extremamente degradante; na devastação das florestas e do solo, na utilização desenfreada de agrotóxicos (o Brasil se tornou há dois anos o maior consumidor de agrotóxicos do mundo); e no acesso a gigantescos créditos governamentais, sempre seguido de calote das dívidas.

Esse modelo produtivo é, portanto, adversário e totalmente incompatível com a justiça social e com a sustentabilidade ambiental. Por isso, os representantes da elite agrária brasileira buscam, de todas as formas, destruir tudo e todos que impeçam sua acumulação desenfreada de capital. É por isso que, desde 2009, a bancada ruralista (deputados e senadores latifundiários que estão no congresso nacional) elegeu como uma de suas prioridades acabar com a legislação ambiental brasileira, tendo como primeiro alvo o Código Florestal Brasileiro.

O Código Florestal Brasileiro surgiu em 1934, com o objetivo de garantir a preservação das florestas, que estavam ameaçadas pelo avanço da monocultura de café e de cana, e pela utilização de lenha, que durante toda a metade do século passado foi a principal fonte de energia do país. Em 1965 ele foi reelaborado, criando então a lei que é válida até hoje.

Apesar de antiga, a lei de 1965 é muito inovadora. Primeiramente, define as florestas como bem de interesse público, de toda a sociedade brasileira. Também define como uso nocivo da propriedade o não cumprimento da própria lei, o que podemos considerar como o início da definição da função socioambiental da propriedade.

É o Código Florestal que define como de proteção permanente as áreas na beira dos rios, nas encostas muito acentuadas e nos topos de morro. As APPs, como essas áreas são chamadas, não podem ter exploração de madeira, mas podem ser usadas para produção de mel, artesanatos, coleta de frutos e outras atividades de baixo impacto. Podem, também, ser recuperadas com sistemas agroflorestais, no caso da agricultura camponesa.

Outro pilar central do Código Florestal é a Reserva Legal (RL), uma lei única entre os países capitalistas. Segundo ela, toda propriedade rural deve ter uma parcela destinada para o uso sustentável, garantindo assim o interesse da sociedade brasileira acima do interesse de propriedade do indivíduo. Nessas áreas é permitido o manejo florestal, inclusive com a extração de madeira.

Em um estudo mais aprofundando do Código, se observará, portanto, que ele tem sua preocupação com a conservação da biodiversidade, dos recursos hídrico, do solo, mas compreende que esta preservação deve ser feita a partir da relação entre seres humanos e meio ambiente. Ou seja, as áreas criadas pelo Código Florestal devem ser utilizadas, mas de forma sustentável, gerando uma grande diversidade de produtos (ervas medicinais, sementes, frutos, óleos, madeira, raízes, castanhas e grãos).

E é justamente por ter como orientação essa exploração diversificada que essas áreas são indesejadas pelos ruralistas. O agronegócio não consegue produzir alimentos, não consegue produzir de forma diversificada, como fazem os camponeses. O modo de produzir do agronegócio é baseado na monocultura, nas máquinas pesadas e no uso descontrolado de agrotóxicos. Para os ruralistas, as APPs e as RLs são áreas improdutivas, empecilhos para o avanço de seu modelo devastador. Para a agricultura camponesa, essas áreas são fundamentais para a soberania alimentar, energética, hídrica, sustentabilidade do ambiente local e para a geração de renda diversificada.

Com a determinação de acabar com os pilares do código florestal, a bancada ruralista criou uma comissão na Câmara dos Deputados exclusivamente para criar uma nova lei, a qual deveria defender seus interesses. A redação do novo Código Florestal ficou a cargo do deputado Aldo Rebello, do PC do B de São Paulo. Apesar de seu histórico de relação com as forças progressistas brasileiras, o deputado construiu um texto que atendeu a boa parte das reivindicações ruralistas.

A primeira questão abordada pela proposta atual é a total anistia das multas aplicadas por desmatamento. Estima-se que estas multas totalizem, hoje, cerca de 10 bilhões de reais. É o reconhecimento pelo Estado brasileiro de que o crime compensa, no caso dos latifundiários.

Outro questão importante é a ampliação do desmatamento que ocorrerá graças às permissões do novo código. Primeiramente, o texto do deputado Aldo Rebello retira o topo de morro das APPs, áreas que são fundamentais para o abastecimento dos lençóis freáticos e que hoje possuem grandes fragmentos florestais, que agora poderão ser desmatados. Além disto, o texto garante o desmatamento para todos os pedidos protocolados até a data de início da lei. A própria Confederação Nacional da Agricultura (CNA), entidade de classe dos ruralistas, reconheceu que haverá uma ampla corrida para desmatar o máximo possível até o lançamento do novo código.

Esses dois pontos garantem um dos principais objetivos dos ruralistas: o fim da “função socioambiental da propriedade”. Com a anistia aos crimes ambientais e a liberação do desmatamento, nenhum latifúndio poderá ser desapropriado por crimes ambientais, tal como ocorreu recentemente com a fazenda Alegria, em Felizburgo, onde cinco militantes de nosso movimento foram assassinados pelo latifundiário Adriano Chafik.
Por fim, o texto do novo código permite que as propriedades com menos até 04 módulos fiscais não tenham reserva legal, com exceção de onde ainda existir mata nativa. Sabendo-se da importância da reserva legal na adubação e ciclagem de nutrientes, na irrigação natural dos solos, no abrigo de predadores naturais das pragas agrícolas e na preservação do solo contra erosões, esse é um presente de grego. Em cerca de uma década muitas unidades produtivas camponesas poderão estar com a fertilidade de seus solos inviabilizada, obrigando as famílias a se mudarem para as cidades ou acabarem como trabalhadores rurais em latifúndios próximos.

Agora o projeto do deputado Aldo Rebello vai para o plenário da Câmara dos Deputados, onde será colocado em votação para os 513 parlamentares. É o momento, portanto, de trabalharmos na conscientização de nossa classe camponesa, buscando demonstrar que não existem problemas graves com a lei, que está do nosso lado. O que existe é uma completa ausência do Estado na garantia de políticas públicas que viabilizem a recuperação das áreas degradadas, com sistemas agroflorestais, por exemplo, e que possibilitem o manejo das áreas de mata nativa.

É tempo de fazermos lutas unificadas entre os movimentos camponeses, juntamente com outras entidades que defendem o meio ambiente e a produção de alimentos saudáveis. É fundamental fazer o debate com a sociedade, deixando claro que o agronegócio não consegue conviver com as florestas, com a diversidade, com a produção de alimentos. E que a agricultura camponesa, os povos indígenas, quilombolas e pescadores são os responsáveis pela produção de alimentos e conservação dos remanescentes florestais que ainda existem.

Artigo de Luiz Zarref, Engenheiro Florestal, Via Campesina e Articulçao Nacional de Agroecologia, e-mail: zarref{at}gmail.com

Artigo socializado no Boletim número 157 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais

EcoDebate, 03/09/2010