A mensagem do novo CFB, generoso em anistia para desmatadores, parece clara: não é necessário cumprir a lei, basta aguardar até ela ser mudada e todos os passivos ambientais serem perdoados
Artigo de Jean Paul Metzger e Thomas M. Lewinsohn
O Brasil conquistou reconhecimento internacional pela consolidação de sua economia e por seu extraordinário patrimônio ambiental, podendo se tornar um exemplo de desenvolvimento aliado à conservação. No discurso, ninguém discordaria que esse é o caminho ideal para o País. As divergências surgem na hora de implementar um efetivo desenvolvimento sustentável. A proposta de um novo Código Florestal Brasileiro (CFB), apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, opta pelo caminho contrário, pois as alterações propostas sinalizam que o desenvolvimento só é possível à custa do ambiente.
A nova proposta do CFB descaracteriza as Áreas de Preservação Permanente (APP), reduzindo a proteção ao longo dos rios e corpos d’água, além de excluir as restingas, topos de morro e várzeas. Isso provocará especulação imobiliária ainda maior nas poucas restingas que restam no litoral brasileiro; reduzirá a reposição e os estoques de água no lençol freático e, progressivamente, a capacidade de irrigação das culturas. A ocupação legalizada de áreas alagadas somente agravará as tragédias que já ocorrem nesses locais, pois as enchentes afetarão cada vez mais as populações que as ocupam.
O novo CFB praticamente extingue as Reservas Legais (RL), ao liberar 90% das propriedades rurais de sua conservação. Para as demais, flexibiliza o uso e oferece muitas vias para reduzir efetivamente as áreas que deveriam ser destinadas à proteção ambiental. Se aprovado o novo código, as APP serão incluídas no cômputo das áreas de RL. Pior do que isso, as Reservas Legais poderão ser “recuperadas” com plantações de espécies exóticas (sem fixar nenhuma proporção mínima de preservação ou recomposição de vegetação nativa), e a exploração econômica dessas áreas será feita conforme parâmetros estabelecidos por cada Estado ou município. Dessa forma, as RL deixam de ser reservas de serviços ecossistêmicos e de proteção ambiental para se travestir em plantios voltados para a exploração madeireira.
O efeito de tais mudanças será a ampla legalização do desmatamento, após uma curta moratória de 5 anos. As estimativas preliminares são de que 70 milhões de hectares serão desmatados, e outros 40 milhões de hectares de RL deixarão de ser recuperados, o que levará a uma emissão de pelo menos 25 a 31 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa – inviabilizando a meta assumida pelo Brasil em Copenhague de reduzir suas emissões em 39% até 2020. Ademais, uma estimativa simples, baseada na relação entre o número de espécies e a área perdida, projeta a extinção de mais de 100 mil espécies. Não há precedente histórico recente de autorização legal para um extermínio biológico nessa escala.
A implementação desse novo CFB é operacionalmente inviável ao transferir a Estados e municípios decisões críticas sobre a redução da área das RL e das APP ao longo dos rios e a aprovação de planos de exploração madeireira nas RL, entre outros. Decisões vitais como essas estarão sujeitas a pressões econômicas e acertos políticos locais. Além disso, a maior parte dos municípios não tem órgão ambiental, e muitos Estados não contam com pessoal capacitado nem com dados geoambientais organizados para enfrentar a enxurrada de pedidos de alteração ou adequação a que serão submetidos, caso o CFB seja sancionado.
É evidente que a proposta do relator Aldo Rebelo peca pela falta de embasamento científico. O deputado e seus apoiadores tentam reduzir toda a discussão em torno desse projeto a um caricato embate entre ruralistas e ambientalistas. A ciência de que se arvoram provém de poucos cientistas e algumas citações fora de contexto, ambos escolhidos a dedo. Com isso, exclui-se uma ampla parcela da comunidade científica das discussões. Nenhuma sociedade científica de ecologia, zoologia, ou botânica foi oficialmente contatada, apesar de serem essas as sociedades que mais entendem de ecossistemas e biodiversidade, o que obviamente é relevante para a revisão da legislação ambiental brasileira. O Brasil é hoje respeitado internacionalmente na pesquisa científica da biodiversidade e conservação, formando anualmente mais de 150 doutores e 450 mestres em seus 35 programas de pós-graduação em ecologia. De que adianta o investimento público na formação de cientistas especializados e de uma extensa infraestrutura de pesquisa, se o conhecimento relevante é marginalizado do processo decisório?
Por fim, preocupa a proposta de total anistia para aqueles que ocuparam ou desmataram de forma irregular até 22 julho de 2008 – ou seja, aqueles que infringiram o Código Florestal durante 43 anos. A mensagem parece clara: não é necessário cumprir a lei, basta aguardar até ela ser mudada e todos os passivos ambientais serem perdoados. Seguindo essa conduta, não haverá razão para respeitar esse novo CFB. Outro deputado proporá uma nova modificação daqui a 40 anos, quando, pelo que hoje se propõe, não restará mesmo muito mais o que conservar.
* Jean Paul Metzger é professor do Instituto de Biociências da USP; Thomas M. Lewinsohn é professor da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 21/06/2010
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