Artigo de Luiz Zarref, Engenheiro Florestal, Via Campesina e Articulçao Nacional de Agroecologia, e-mail: zarref@gmail.com
Apesar da grande campanha ideológica das elites brasileiras em busca de apresentar o agronegócio como uma agricultura moderna, as contradições deste modelo de produção agrícola são difíceis de esconder. Em pleno século XXI seu modelo produtivo continua igual à época da invasão portuguesa, baseado no latifúndio, em sua maioria fruto de grilagem e expulsão de quilombolas, indígenas e camponeses; no trabalho escravo ou extremamente degradante; na devastação das florestas e do solo, na utilização desenfreada de agrotóxicos (o Brasil se tornou há dois anos o maior consumidor de agrotóxicos do mundo); e no acesso a gigantescos créditos governamentais, sempre seguido de calote das dívidas.
Esse modelo produtivo é, portanto, adversário e totalmente incompatível com a justiça social e com a sustentabilidade ambiental. Por isso, os representantes da elite agrária brasileira buscam, de todas as formas, destruir tudo e todos que impeçam sua acumulação desenfreada de capital. É por isso que, desde 2009, a bancada ruralista (deputados e senadores latifundiários que estão no congresso nacional) elegeu como uma de suas prioridades acabar com a legislação ambiental brasileira, tendo como primeiro alvo o Código Florestal Brasileiro.
O Código Florestal Brasileiro surgiu em 1934, com o objetivo de garantir a preservação das florestas, que estavam ameaçadas pelo avanço da monocultura de café e de cana, e pela utilização de lenha, que durante toda a metade do século passado foi a principal fonte de energia do país. Em 1965 ele foi reelaborado, criando então a lei que é válida até hoje.
Apesar de antiga, a lei de 1965 é muito inovadora. Primeiramente, define as florestas como bem de interesse público, de toda a sociedade brasileira. Também define como uso nocivo da propriedade o não cumprimento da própria lei, o que podemos considerar como o início da definição da função socioambiental da propriedade.
É o Código Florestal que define como de proteção permanente as áreas na beira dos rios, nas encostas muito acentuadas e nos topos de morro. As APPs, como essas áreas são chamadas, não podem ter exploração de madeira, mas podem ser usadas para produção de mel, artesanatos, coleta de frutos e outras atividades de baixo impacto. Podem, também, ser recuperadas com sistemas agroflorestais, no caso da agricultura camponesa.
Outro pilar central do Código Florestal é a Reserva Legal (RL), uma lei única entre os países capitalistas. Segundo ela, toda propriedade rural deve ter uma parcela destinada para o uso sustentável, garantindo assim o interesse da sociedade brasileira acima do interesse de propriedade do indivíduo. Nessas áreas é permitido o manejo florestal, inclusive com a extração de madeira.
Em um estudo mais aprofundando do Código, se observará, portanto, que ele tem sua preocupação com a conservação da biodiversidade, dos recursos hídrico, do solo, mas compreende que esta preservação deve ser feita a partir da relação entre seres humanos e meio ambiente. Ou seja, as áreas criadas pelo Código Florestal devem ser utilizadas, mas de forma sustentável, gerando uma grande diversidade de produtos (ervas medicinais, sementes, frutos, óleos, madeira, raízes, castanhas e grãos).
E é justamente por ter como orientação essa exploração diversificada que essas áreas são indesejadas pelos ruralistas. O agronegócio não consegue produzir alimentos, não consegue produzir de forma diversificada, como fazem os camponeses. O modo de produzir do agronegócio é baseado na monocultura, nas máquinas pesadas e no uso descontrolado de agrotóxicos. Para os ruralistas, as APPs e as RLs são áreas improdutivas, empecilhos para o avanço de seu modelo devastador. Para a agricultura camponesa, essas áreas são fundamentais para a soberania alimentar, energética, hídrica, sustentabilidade do ambiente local e para a geração de renda diversificada.
Com a determinação de acabar com os pilares do código florestal, a bancada ruralista criou uma comissão na Câmara dos Deputados exclusivamente para criar uma nova lei, a qual deveria defender seus interesses. A redação do novo Código Florestal ficou a cargo do deputado Aldo Rebello, do PC do B de São Paulo. Apesar de seu histórico de relação com as forças progressistas brasileiras, o deputado construiu um texto que atendeu a boa parte das reivindicações ruralistas.
A primeira questão abordada pela proposta atual é a total anistia das multas aplicadas por desmatamento. Estima-se que estas multas totalizem, hoje, cerca de 10 bilhões de reais. É o reconhecimento pelo Estado brasileiro de que o crime compensa, no caso dos latifundiários.
Outro questão importante é a ampliação do desmatamento que ocorrerá graças às permissões do novo código. Primeiramente, o texto do deputado Aldo Rebello retira o topo de morro das APPs, áreas que são fundamentais para o abastecimento dos lençóis freáticos e que hoje possuem grandes fragmentos florestais, que agora poderão ser desmatados. Além disto, o texto garante o desmatamento para todos os pedidos protocolados até a data de início da lei. A própria Confederação Nacional da Agricultura (CNA), entidade de classe dos ruralistas, reconheceu que haverá uma ampla corrida para desmatar o máximo possível até o lançamento do novo código.
Esses dois pontos garantem um dos principais objetivos dos ruralistas: o fim da “função socioambiental da propriedade”. Com a anistia aos crimes ambientais e a liberação do desmatamento, nenhum latifúndio poderá ser desapropriado por crimes ambientais, tal como ocorreu recentemente com a fazenda Alegria, em Felizburgo, onde cinco militantes de nosso movimento foram assassinados pelo latifundiário Adriano Chafik.
Por fim, o texto do novo código permite que as propriedades com menos até 04 módulos fiscais não tenham reserva legal, com exceção de onde ainda existir mata nativa. Sabendo-se da importância da reserva legal na adubação e ciclagem de nutrientes, na irrigação natural dos solos, no abrigo de predadores naturais das pragas agrícolas e na preservação do solo contra erosões, esse é um presente de grego. Em cerca de uma década muitas unidades produtivas camponesas poderão estar com a fertilidade de seus solos inviabilizada, obrigando as famílias a se mudarem para as cidades ou acabarem como trabalhadores rurais em latifúndios próximos.
Agora o projeto do deputado Aldo Rebello vai para o plenário da Câmara dos Deputados, onde será colocado em votação para os 513 parlamentares. É o momento, portanto, de trabalharmos na conscientização de nossa classe camponesa, buscando demonstrar que não existem problemas graves com a lei, que está do nosso lado. O que existe é uma completa ausência do Estado na garantia de políticas públicas que viabilizem a recuperação das áreas degradadas, com sistemas agroflorestais, por exemplo, e que possibilitem o manejo das áreas de mata nativa.
É tempo de fazermos lutas unificadas entre os movimentos camponeses, juntamente com outras entidades que defendem o meio ambiente e a produção de alimentos saudáveis. É fundamental fazer o debate com a sociedade, deixando claro que o agronegócio não consegue conviver com as florestas, com a diversidade, com a produção de alimentos. E que a agricultura camponesa, os povos indígenas, quilombolas e pescadores são os responsáveis pela produção de alimentos e conservação dos remanescentes florestais que ainda existem.
Artigo de Luiz Zarref, Engenheiro Florestal, Via Campesina e Articulçao Nacional de Agroecologia, e-mail: zarref{at}gmail.com
Artigo socializado no Boletim número 157 do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais
EcoDebate, 03/09/2010
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